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Reforma tributária: a despedida dos regimes aduaneiros diferenciados

Os mais afeitos à música popular brasileira devem conhecer a canção “Encontros e Despedidas”, cujos versos ilustram o dia a dia de uma estação de trem, lugar onde “tem gente que chega pra ficar e tem gente que vai pra nunca mais”[1]. A reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados, no início de julho, parece bem ilustrar essa passagem no âmbito da tributação sobre consumo no comércio exterior. Isso porque a reforma tem por objetivos trazer simplicidade[2] e neutralidade[3] ao sistema tributário, determinando-se, ainda, não fazer “concessão de incentivos e benefícios financeiros ou fiscais relativos ao imposto ou de regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação[4]com exceção dos previstos na própria Constituição.

Portanto, a conhecida proposta do IVA dual, em que haverá aglutinação do PIS e da Cofins em torno da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS)[5], e dos impostos ICMS e ISS em torno do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) é, de início, extremamente salutar, pois unifica sobre o termo “bens” as diversas categorias de direito privado que já causara bastante celeuma jurídica[6]. Por outro lado, no comércio exterior, essa simplicidade não caminha junto com a exclusão de todos os favores fiscais de qualquer espécie existentes.

Isso porque há uma infinidade de situações previstas na legislação aduaneira voltadas simplesmente a simplificar a entrada e saída de mercadorias. Não estamos falando dos regimes aduaneiros especiais[7] (tema objeto de outro artigo nesta série), mas sim de regimes aduaneiros de tributação diferenciados, que muito facilitam a vida de importadores e da própria Aduana.

Veja-se, por exemplo, como ocorre hoje quando você chega no terminal aeroportuário depois de uma viagem internacional. As mercadorias adquiridas pelo viajante no exterior até o limite de US$ 1.000 estão isentas do Imposto de Importação, sendo tributadas por este imposto na alíquota 50% quando ultrapassar a respectiva faixa de isenção, por meio do chamado Regime de Tributação Especial (RTE). Por sua vez, os demais tributos (IPI-Importação[8], PIS/COFINS-Importação[9], ICMS-Importação[10]) estão isentos, não precisando preencher declaração alguma à Aduana. Por outro lado, com a PEC 45/19 aprovada na Câmara, essa simplicidade pode acabar, colocando o Brasil numa esdrúxula e singular situação de passar a tributar todos os seus viajantes com IBS e CBS. Portanto, aqui, a simplicidade tão buscada na PEC não caminha de mãos dadas com a extinção dos benefícios deste regime aduaneiro diferenciado.

Cita-se ainda o Regime de Tributação Simplificada (RTS)[11], que atualmente isenta da IPI[12], PIS/Cofins-Importação[13] suas remessas internacionais. A partir da reforma, essa isenção deixa de existir, dando lugar à CBS e IBS, que poderão também pelo novo marco constitucional serem cobradas da pessoa do sujeito passivo “ainda que residente ou domiciliada no exterior”[14]. Assim, a utilidade prática do RTS residiria apenas na classificação genérica de mercadorias (sem fixação de um Código da Nomenclatura Comum do Mercosul) e na facilidade de não demandar registro no Siscomex por parte do destinatário da encomenda.

Até aqui nenhum problema, pois o programa Remessa Conforme instituído pela Receita Federal busca justamente repassar esse dever de recolhimento dos impostos às plataformas de marketplace situadas no exterior. A questão é que o Imposto de Importação, que atualmente possui uma pesada alíquota de 60%[15] sobre as remessas internacionais de mercadorias, não possui autorização constitucional semelhante para sujeição passiva[16]. Portanto, novo rumo de correções textual deve ser buscado para afastar essa incoerência, para que o regime possa ter sobrevida após a reforma.

O esvaziamento também vai ocorrer com o Regime de Tributação Unificada (RTU), mecanismo criado para formalizar os sacoleiros que trazem mercadorias pela via terrestre procedentes do Paraguai[17]. O RTU só autoriza empresas do Simples Nacional a fazerem importação, mediante a cobrança de uma alíquota total de 25% relativa aos tributos federais[18]. Trata-se de regime que não está dentro do Simples Nacional, e será inutilizado após a aprovação da reforma, pois beneficiários do Lucro Presumido do Simples Nacional – portanto sem direito a creditamento –, deverão pagar a carga tributária normal da tributação indireta quando fizerem a importação, acrescida do Imposto de Importação.

Por fim, cita-se o Regime de Tributação de Mercadorias Não Identificadas (RTMNI), que se vale da tributação simplificada para tributar mercadorias que tenham sido objeto de extravio, consumo, ou descritas genericamente nos documentos comerciais ou de transporte, sob uma alíquota de 80%[19]. Aqui, como se trata de uma alíquota mais gravosa em razão da omissão de informações, o efeito será o inverso do regime anterior, pois essa carga tributária poderá ser reduzida por força da alíquota geral do IBS/CBS que não comportará tratamentos diferenciados.

Portanto, mais do que nunca, mantida a desoneração apenas para os regimes aduaneiros especiais[20], os regimes aduaneiros diferenciados que citamos perderão, em grande medida, a razão de sua existência. Parafraseando Milton Nascimento e Fernando Brant, o seu esquecimento na atual reforma tributária faz com que, na votação do Senado, “a hora do encontro seja também despedida”.


[1] A canção “Encontros e Despedidas” foi composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, ganhando ampla divulgação quando da regravação feita por Maria Rita. Warner Music Brasil. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oJPDJUOErlo. Acesso em: 28 agosto de 2023.

[2] Art. 145, § 3º, conforme texto da PEC 45/2019 aprovado na Câmara dos Deputados.

[3] Art. 156-A, inciso VIII, conforme texto da PEC 45/2019 aprovado na Câmara dos Deputados.

[4] Artigo 156-A, inciso X, conforme texto da PEC 45/2019 aprovado na Câmara dos Deputados.

[5] Avaliamos a carga tributária proposta no PL 3.887/2020 para a CBS na tributação de mercadorias no artigo intitulado “A Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) na importação de mercadorias”, publicado em agosto de 2020 aqui no JOTA. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-contribuicao-sobre-bens-e-servicos-cbs-na-importacao-de-mercadorias-01082020. Acesso em 28 de agosto de 2023.

[6] Falamos sobre a unificação dessas categorias em artigo aqui do JOTA intitulado “A evolução conceitual do IBS no fato gerador de importação de ‘bens’” publicado ainda em outubro de 2019. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-evolucao-conceitual-do-ibs-no-fato-gerador-de-importacao-de-bens-03102019. Acesso em 28 de agosto de 2023.

[7] Art. 156-A, §5º, IX: Lei Complementar disporá sobre as hipóteses de diferimento do imposto aplicáveis aos regimes aduaneiros especiais e às zonas de processamento de exportação. (Conforme texto da PEC 45/2019 aprovado na Câmara dos Deputados).

[8] Lei 8.032/1990, art. 3º, inc. II

[9] Lei 10.865/2004, art. 9, II, “c”.

[10] Convênio ICMS 18/95, Cláusula 1º, VI

[11] Instituído pelo Decreto-Lei 1.804/1980.

[12] Decreto-Lei 1.804/1980, art. 1º, §1º

[13] Lei 10.865/2004, art. 9, II, “c”.

[14] Art. 156-A, § 3º, conforme texto da PEC 45/2019 aprovado na Câmara dos Deputados.

[15] Falamos sobre a calibragem dessa alíquota no artigo “Tributação das remessas internacionais de mercadorias: há espaço para ajuste?”, publicado em maio deste ano. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-31/thalis-andrade-tributacao-remessas-internacionais-mercadorias. Acesso em 28 de agosto de 2023.

[16] Falamos sobre a falta de previsão legal para se instituir a responsabilização dos marketplaces no artigo “Ausência de responsabilidade legal na remessa e desigualdade tributária”, publicado em julho deste ano. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jul-20/thalis-andrade-desconformidadedo-programa-remessa-conforme2. Acesso em 28 de agosto de 2023.

[17] Lei 11.898/2009.

[18] Decreto 6.956/2009, art. 11.

[19] Lei 13.043/204, art. 56

[20] Art. 156-A, §5º, inciso IX, conforme texto da PEC 45/2019 aprovado na Câmara dos Deputados.

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